terça-feira, 22 de junho de 2010

Igreja e igrejas: a doutrina católica



      Caro Internauta, A Congregação para a Doutrina da Fé, por ordem de Bento XVI, tornou público um pequeno e precioso documento contendo respostas a algumas questões sobre a Igreja. Não há aí nada de novo. Pelo contrário: deseja-se somente reafirmar a doutrina do Concílio Vaticano II que muitos, em nome do Concílio, insistem em deturpar e até mesmo negar. Vou comentar cada parágrafo porque é muito importante que todo católico compreenda bem! Um consolo que tenho é que, lendo os textos deste blog e do site, você encontrará a mesmíssima doutrina! É meu propósito: servir fielmente à Igreja, ajudando os irmãos a bem compreender e viver a riqueza de nossa fé...

     É de todos conhecida a importância que teve o Concílio Vaticano II para um conhecimento mais profundo da eclesiologia católica, quer com a Constituição dogmática Lumen Gentium quer com os Decretos sobre o Ecumenismo (Unitatis redintegratio) e sobre as Igrejas Orientais (Orientalium Ecclesiarum). Muito oportunamente, também os Sumos Pontífices acharam por bem aprofundar a questão, atendendo sobretudo à sua aplicação concreta: assim, Paulo VI com a Carta encíclica Ecclesiam suam (1964) e João Paulo II com a Carta encíclica Ut unum sint (1995).
      O sucessivo trabalho dos teólogos, tendente a ilustrar com maior profundidade os múltiplos aspectos da eclesiosologia, levou à produção de uma vasta literatura na matéria. Mas, se o tema se revelou deveras fecundo, foi também necessário proceder a algumas chamadas de atenção e esclarecimentos, como aconteceu com a Declaração Mysterium Ecclesiae (1973), a Carta aos Bispos da Igreja Católica Communionis notio (1992) e a Declaração Dominus Iesus (2000), todas elas promulgadas pela Congregação para a Doutrina da Fé.
       A complexidade estrutural do tema, bem como a novidade de muitas afirmações, continuam a alimentar a reflexão teológica, nem sempre imune de desvios geradores de dúvidas, a que esta Congregação tem prestado solícita atenção. Daí que, tendo presente a doutrina íntegra e global sobre a Igreja, entendeu ela dar com clareza a genuína interpretação de algumas afirmações eclesiológicas do Magistério, por forma a que o correto debate teológico não seja induzido em erro, por motivos de ambigüidade.
     Observação minha: Observe bem qual a preocupação da Santa Sé: apesar de o Magistério ter feito várias intervenções neste período pós-conciliar, há vários teólogos que insistem em sustentar teses confusas, ambíguas e até contrárias à doutrina católica. Basta recordar o quanto criticaram a Dominus Iesus. No entanto, não adianta delirar! A doutrina católica sobre a Igreja é exatamente a que vai apresentada a seguir!

Primeira questão: Terá o Concílio Ecumênico Vaticano II modificado a precedente doutrina sobre a Igreja?

Resposta: O Concílio Ecumênico Vaticano II não quis modificar essa doutrina nem se deve afirmar que a tenha mudado; apenas quis desenvolvê-la, aprofundá-la e expô-la com maior fecundidade.

Foi quanto João XXIII claramente afirmou no início do Concílio. Paulo VI repetiu-o e assim se exprimiu no ato de promulgação da Constituição Lumen Gentium: "Não pode haver melhor comentário para esta promulgação do que afirmar que, com ela, a doutrina transmitida não se modifica minimamente. O que Cristo quer, também nós o queremos. O que era, manteve-se. O que a Igreja ensinou durante séculos, também nós o ensinamos. Só que o que antes era perceptível apenas em nível de vida, agora também se exprime claramente em nível de doutrina; o que até agora era objeto de reflexão, de debate e, em parte, até de controvérsia, agora tem uma formulação doutrinal segura". Também os Bispos repetidamente manifestaram e seguiram essa mesma intenção.
Observação minha: Aqui, se procura explicar que a doutrina católica não foi modificada pelo Vaticano II. Uma coisa é o progresso, o desenvolvimento orgânico da doutrina – que sempre houve e haverá na história da Igreja; outra, bem diferente é a adulteração, a modificação! A Congregação para a Doutrina da Fé procura, portanto, deixar claro que a eclesiologia do Vaticano II deve ser interpretada à luz da perene Tradição da Igreja. Como Bento XVI tanto insiste, o Vaticano II não foi uma ruptura nem uma revolução, mas um progresso na vida e na fé da Igreja de Cristo. 
Segunda questão: Como deve entender-se a afirmação de que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica?

Resposta: Cristo "constituiu sobre a terra" uma única Igreja e instituiu-a como "grupo visível e comunidade espiritual", que desde a sua origem e no curso da história sempre existe e existirá, e na qual só permaneceram e permanecerão todos os elementos por Ele instituídos. "Esta é a única Igreja de Cristo, que no Símbolo professamos como sendo una, santa, católica e apostólica […]. Esta Igreja, como sociedade constituída e organizada neste mundo, subsiste na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele".
Na Constituição dogmática Lumen Gentium 8, subsistência é esta perene continuidade histórica e a permanência de todos os elementos instituídos por Cristo na Igreja católica, na qual concretamente se encontra a Igreja de Cristo sobre esta terra.
Enquanto, segundo a doutrina católica, é correto afirmar que, nas Igrejas e nas comunidades eclesiais ainda não em plena comunhão com a Igreja católica, a Igreja de Cristo é presente e operante através dos elementos de santificação e de verdade nelas existentes, já a palavra "subsiste" só pode ser atribuída exclusivamente à única Igreja católica, uma vez que precisamente se refere à nota da unidade professada nos símbolos da fé (Creio… na Igreja "una"), subsistindo esta Igreja "una" na Igreja católica.

Observação minha: Muito bem articulada, muito equilibrada esta resposta! Vejamos: (1) Explica que a Igreja de Cristo subsiste única e exclusivamente na Igreja católica (aquela que está em comunhão com o Sucessor de Pedro e os Bispos em comunhão com ele); (2) esclarece o que significa “subsistir”: é a perene continuidade histórica e a permanência de todos os elementos instituídos por Cristo para a sua Igreja. O decreto Unitatis Redintegratio, do Vaticano II, diz quais são esses elementos. Eis alguns: a profissão de fé em Jesus como Senhor e Salvador, a fé na Trindade, a Palavra de Deus ouvida e proclamada segundo a Tradição apostólica, os sacramentos, de modo particular o Batismos e a Eucaristia, a sucessão apostólica dos Bispos, o ministério petrino, a veneração da virgem Maria e dos Santos de Cristo, a vida da graça, a caridade fraterna, os dons e carismas do Espírito Santo, o martírio, o zelo missionário, a esperança na vida eterna... Todos estes elementos fazem parte da Igreja de Cristo e nela não podem faltar. Ora, somente na Igreja católica eles se encontram na sua totalidade. (3) Esta resposta faz eco também à Declaração Dominus Iesus, que ensina não ser possível falar em vários graus de subsistência: a subsistência é uma só e plena. Em outras palavras: A Igreja de Cristo subsiste, permanece, continua de modo completo somente na Igreja católica!

Terceira questão: Porque se usa a expressão "subsiste na", e não simplesmente a forma verbal "é"?

Resposta: O uso desta expressão, que indica a plena identidade da Igreja de Cristo com a Igreja católica, não altera a doutrina sobre Igreja; encontra, todavia, a sua razão de verdade no fato de exprimir mais claramente como, fora do seu corpo, se encontram "diversos elementos de santificação e de verdade", "que, sendo dons próprios da Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica".
"Por isso, as próprias Igrejas e Comunidades separadas, embora pensemos que têm faltas, não se pode dizer que não tenham peso ou sejam vazias de significado no mistério da salvação, já que o Espírito se não recusa a servir-se delas como de instrumentos de salvação, cujo valor deriva da mesma plenitude da graça e da verdade que foi confiada à Igreja católica".
Observação minha: Note-se o compromisso com a verdade e, ao mesmo tempo, a delicadeza ecumênica desta resposta. Primeiro, o texto explica que tanto faria dizer: “A Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica” quanto “A Igreja de Cristo é a Igreja católica”. A questão é que afirmar simplesmente “é” torna mais difícil compreender como fora da sua unidade visível possam existir elementos eclesiais. O “subsiste” é mais compatível com a doutrina segundo a qual fora da unidade da Igreja católica há elementos de salvação. Em segundo lugar, o texto deixa claro que o Espírito Santo utiliza também as comunidades não católicas na obra da salvação. Tudo quanto essas comunidades possuam de realmente eclesial deriva da plenitude católica e a ela conduzem!

Quarta questão: Porque é que o Concílio Ecumênico Vaticano II dá o nome de "Igrejas" às Igrejas orientais separadas da plena comunhão com a Igreja católica?

Resposta: O Concílio quis aceitar o uso tradicional do nome. "Como estas Igrejas, embora separadas, têm verdadeiros sacramentos e, sobretudo, em virtude da sucessão apostólica, o Sacerdócio e a Eucaristia, por meio dos quais continuam ainda unidas a nós por estreitíssimos vínculos", merecem o título de "Igrejas particulares ou locais", e são chamadas Igrejas irmãs das Igrejas particulares católicas.
"Por isso, pela celebração da Eucaristia do Senhor em cada uma destas Igrejas, a Igreja de Deus é edificada e cresce". Como, porém, a comunhão com a Igreja católica, cuja Cabeça visível é o Bispo de Roma e Sucessor de Pedro, não é um complemento extrínseco qualquer da Igreja particular, mas um dos seus princípios constitutivos internos, a condição de Igreja particular, de que gozam essas venerandas Comunidades cristãs, é de certo modo lacunosa.
Por outro lado, a plenitude da catolicidade própria da Igreja, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, encontra na divisão dos cristãos um obstáculo à sua realização plena na história.

Quinta questão: Por que razão os textos do Concílio e do subseqüente Magistério não atribuem o título de "Igreja" às comunidades cristãs nascidas da Reforma do século XVI?

Resposta: Porque, segundo a doutrina católica, tais comunidades não têm a sucessão apostólica no sacramento da Ordem e, por isso, estão privadas de um elemento essencial constitutivo da Igreja. Ditas comunidades eclesiais que, sobretudo pela falta do sacerdócio sacramental, não conservam a genuína e íntegra substância do Mistério eucarístico, não podem, segundo a doutrina católica, ser chamadas "Igrejas" em sentido próprio.

Observação minha: Aqui, nestas duas últimas perguntas, é importante reter o seguinte: 

(a) Os católicos denominam “igrejas” em sentido teológico somente aquelas comunidades que conservaram a plena sucessão apostólica dos Bispos e a Eucaristia plena. É o caso das Igrejas particulares (dioceses) ortodoxas e vétero-católicas. Teologicamente, não existe um Igreja ortodoxa, mas Igrejas (dioceses) ortodoxas, que não estão em comunhão plena com o Bispo de Roma e, assim, não estão na plena unidade da Igreja de Cristo. Têm elas uma ferida grave: falta-lhes o ministério petrino, que Cristo quis na sua Igreja.

(b) Os católicos denominam “comunidades eclesiais” aquelas denominações surgidas da Reforma Protestante: faltam-lhes a sucessão apostólica dos Bispos e a Eucaristia plena. Ora, sem o ministério ordenado na sua plenitude e sem a Eucaristia não há Igreja; há comunidades que possuem elementos da Igreja de Cristo!

(c) É digno de nota que o texto esclarece que também a Igreja católica se ressente de tais divisões, pois que são um obstáculo à sua plena realização na história. O ecumenismo, busca da unidade visível de todos os cristãos, é, pois, uma necessidade também para o bem dos católicos.

Por: Dom Henrique Soares da Costa

domingo, 6 de junho de 2010

ARCEBISPO DE FERRO, ARCEBISPO DE LÃ


A VIDA E A PERSONALIDADE DE MONS. MARCEL LEFEBVRE


Por Dom Bernard Tissier de Mallerais

A conferência que transcrevemos a seguir foi dada por Dom Bernard Tissier de Mallerais, um dos quatro bispos da Fraternidade S. Pio X, quando de sua passagem pela nossa Capela de N. Sra da Conceição, em Niterói, R.J., em dezembro de 2003. Dom Tissier é autor da mais completa biografia da vida de Dom Marcel Lefebvre, que foi editada em 2002 pelas Edições Clovis (França), contendo mais de 700 páginas

Caros amigos, falarei em Castelhano, pois não conheço Português. Excusez-moi.

O tema de minha palestra é a vida de Mons. Lefebvre, nosso venerável Fundador. Mons. Lefebvre viveu de 1905 até 1991. Quase todo o século XX, portanto. Nasceu no norte de França, na cidade de Tourcoing, filho de um industrial, não da siderurgia, como diziam os meios de comunicação ao acusar Mons. Lefebvre de ser um “bispo de ferro”, mas da indústria da lã. Mons. Lefebvre, assim, era um bispo de Lã: um bispo de firmeza e doçura, um bispo de ferro e de lã.

O pai de Marcel Lefebvre, René Lefebvre, é um homem de piedade e trabalho. Após a Primeira Guerra Mundial, sua industria encontra-se destruída. Ele a reconstrói e funda três filiais na França — era um homem de empresa. Monarquista, lutava para restabelecer o rei em França: lutava pelo rei e por Cristo Rei. Era um homem de organização metódica e de caráter integral, com princípios claros e cabeça bem formada.

Sua mãe, Gabrielle Watine, era filha de empresários do Norte de França, tinha oito filhos. Mas isso não parecia o bastante para essa piedosa enfermeira da Cruz Vermelha, membro da Organização São Vicente de Paulo para a visita dos pobres, e diretora da Terceira Ordem de São Francisco para Mulheres, onde tinha mais de 500 mulheres baixo suas ordens. Era uma mulher de obras.

Mons. Lefebvre recebera de sua família um conjunto de traços muito rico: empresa e zelo apostólico, como veremos.

Quando jovem, Marcel Lefebvre cursou o Colégio do Sagrado Coração, em Tourcoing, e fez sua primeira comunhão em 1911, aos 6 anos de Idade — uma exceção nestes anos, apesar do decreto do Papa São Pio X de um ano antes que tornava possível a comunhão a meninos desta idade. Ao chegar em casa, o jovem Lefebvre pegou sua mais bela pena e escreveu... ao Papa, para agradecer-lhe. Seus pais, que nada sabiam da correspondência, só vieram a saber dela mais tarde, quando viram o carteiro entregar uma carta de Roma...

Aos 16 anos, Marcel Lefebvre se tornou vice-presidente da Congregação de São Vicente de Paulo de seu colégio. E assim, visitava os pobres com sua bicicleta e organizava as visitas de seus companheiros aos pobres bairros da cidade de Tourcoing.

Aos 17 anos, já era um homem de organização, já tinha o sentido de comércio, já era um homem prático. Ao fim dos seus estudos secundários, antes das férias da Páscoa, seu professor, o padre Deconinck, disse a todos estudantes: “Atenção! Durante estas férias todos vocês têm de resolver seu futuro: ou aprender alguma ocupação e casar-se para formar uma família católica ou entrar em um Seminário.” Era preciso decidir.

“Como decidir coisa tão grande?”, interrogava-se Lefebvre. Aconselhado por sua irmã, pegou sua bicicleta e foi fazer um retiro espiritual com os beneditinos da Abadia de Wisques. Fez o retiro e, de volta a casa, toda sua família correu sobre ele para perguntar-lhe o que o padre havia dito. Ele respondeu: “O padre falou que não tenho a vocação beneditina, pois quero fazer apostolado.”

Às vezes sentia-se atraído pela vida austera dos trapistas, pois sempre se admirava em vê-los tão recolhidos e trabalhadores. Pensava que talvez devesse se tornar um simples frade.

Foi então com sua bicicleta à Bélgica perguntar ao padre Alphonse, na Abadia trapista São Sixto de Westvleteren, em Poperinghe. Deste padre, que fora sacerdote e missionário no Congo e, por fim, trapista na Bélgica, dizia-se ter o dom de ler os corações. Marcel Lefebvre entrou na Abadia, chamou pelo padre que veio, fixou os olhos nos seus e disse, antes mesmo de ser perguntado: “você tem de se fazer sacerdote!”. Não havia nenhuma hesitação em sua voz.

Trata-se de um caso excepcional. Em geral, é preciso rezar muito, meditar muito e decidir-se por si mesmo. Mas, no caso de Mons. Lefebvre, foi uma luz que recebeu do céu. E assim, voltou para casa e avisou seu pai: “Pai, vou tornar-me sacerdote, e, por isso, vou ingressar no seminário de Lille, porque gostaria de tornar-me um pároco no campo, em uma pequena paróquia no campo, com minhas ovelhas, santificando-as e santificando-me”. Seu ideal era viver como um pároco de Ars.

Seu pai, porém, disse-lhe que não: “Não, não, não! Teu irmão maior está em Roma, estudando no Seminário, e você também irá para Roma”. Não havia o que discutir: seu pai era o respeitado chefe da família e ele obedeceu. A Providência o levava a Roma, para fazer seus estudos sob a direção segura do célebre padre Henri Le Floch, um homem forte, de princípios fortes.

Temos alguns testemunhos do espírito do Padre Le Floch. Quando fez 50 anos de sacerdócio, recebeu cartas dos seus antigos alunos, que lhe escreveram louvando-o. Temos testemunhos muito interessantes de companheiros de Mons. Lefebvre no seminário. Por exemplo, o cônego J. Taillade, diretor do seminário maior de Perpignan, escreveu ao Padre Le Floch: “Eu ainda tenho o entusiasmo dos meus 18 anos, e o devo ao senhor. Pois foi então, no seminário, que recebi os princípios que fazem a alegria de minha vida.” — um seminarista que atribuía sua alegria aos princípios que aprendera! Outro testemunho, do padre Roger Johan, professor no seminário menor de Sées e futuro Bispo, “que alegria ter sido formado a viver fortemente de princípios!”. Outro testemunho, de dom Albert de Saint-Avid, monge beneditino em Solesmes, “o senhor nos ensinou o culto da plena verdade, e o horror pelas verdades diminuídas...”.

Mons. Lefebvre nos disse um dia, em conferência espiritual, “tivemos então de escolher: ou abandonar o seminário, se não estivéssemos de acordo; ou permanecer, marchar e entrar no combate”. E acrescentou: “eu penso que toda minha vida sacerdotal foi orientada por esse combate contra o liberalismo.”

Que é o liberalismo? Que dizia o padre Le Floch do Liberalismo no seminário francês? Dava o padre uma definição interessante: primeiro, a recusa prática do reinado social de Jesus Cristo. A supressão do governo de Cristo Rei; segundo, a eliminação da Santa Missa; terceiro, a eliminação da vida sobrenatural das almas. Uma definição profética do padre Le Floch, pois foi exatamente isso o que ocorreu no Concílio Vaticano II: a supressão do reinado de Cristo Rei, pela declaração da Liberdade Religiosa; a eliminação da Missa, por sua substituição pela Missa Nova, que é a expressão de uma nova religião; a eliminação da vida sobrenatural nas almas, porque os católicos não vivem mais da graça, não se confessam, não vivem em estado de graça. Conseqüência natural da supressão do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mons. Lefebvre posteriormente tomaria este programa em uma nova ordem. Ou seja: primeiro, a Santa Missa aos fiéis; segundo, a partir da Missa, a partir dos sacramentos, a formação de uma elite católica pela vida da graça; terceiro, a partir desta elite, voltar a coroar Nosso Senhor Jesus Cristo. Eis o programa católico de Mons. Lefebvre.

Boa formação, boa formação. O jovem Marcel Lefebvre foi ordenado no ano 1929, e regressou a Roma para fazer o último ano e tornar-se doutor em Teologia. Escreveu então a Mons. Liénart, “Sinto-me chamado para a vida Missionária. O dogma fora da Igreja não há salvação faz com que me preocupe com a salvação dos pagãos”. O Bispo lhe respondeu: “Não, o sr. tem de fazer um ano a serviço da diocese antes de ir-se em missão”. Um ano de penitência, como se dizia.

Em 1930, Mons. Lefebvre se apresentou em uma pequena paróquia de pobres operários comunistas, no subúrbio de Lille, para cumprir seu ano de penitência como simples segundo vigário. Tinha então de ir de porta em porta perguntando: “Por que não levam seus filhos para o Catecismo? Ah, não estão casados? Vamos acertas a situação! Ah, são comunistas...”.

Um dia um pobre operário estava morrendo e não queria ver nenhum padre. “Nem o segundo pároco, que é jovem?” perguntaram-lhe. “Sim, ele pode vir”. Veio Mons. Lefebvre, ouviu sua confissão, deu-lhe os sacramentos, e o homem morreu católico. Missão entre os operários: uma boa escola para começar a vida de sacerdote.

No final de ano, Mons. Lefebvre já tinha tomado muito gosto de seu apostolado com os operários e já tinha se esquecido de sua vocação missionária, de correr as florestas para encontrar os pagãos. Gostava muito de sua paróquia. Mas o irmão mais velho, René Lefebvre escrevia-lhe cartas: “Que fazes aí? Venhas comigo, há muito trabalho por aqui, muitos batismos...”. E Mons. Lefebvre, por fim, decidiu-se a ir por razão de Fé. Pediu autorização a seu Bispo, que o permitiu, e foi a Orly apresentar-se aos padres da Congregação do Espírito Santo, uma congregação de missionários na África. Tornou-se, então, simples noviço no noviciado da Congregação do Espírito Santo em Paris.

Normalmente, no fim do ano, os irmãos decidiam sua nomeação no final de ano: “O Sr. é nomeado para Madagascar, o sr. para o Gabão, o sr. para as Antilhas Francesas...”. Contudo, não foi assim para Mons. Lefebvre. Mons. Tardy, o Bispo do Gabão veio em visita no mês de Junho ao Seminário. E quando viu Mons. Lefebvre, que já era um Sacerdote e já estava completamente preparado para África, disse-lhe: “O sr. virá conosco, o sr. sabe?”. Respondeu-lhe Mons. Lefebvre, “Não sei de nada, isto depende do superior geral.” Retrucou o Bispo, “Não, não, o sr. vem, estou certo.”. Que alegria para Mons. Lefebvre, sabia que estaria atuando ao lado de seu irmão. Mas, imediatamente disse-lhe o Bispo: “Tenho a intenção de nomear-lhe professor no Seminário!”. Que decepção: o padre Lefebvre não queria ser professor, não queria ensinar — nunca gostou de ensinar — queria apenas estar com os nativos. Mas, obedeceu, e durante dois anos foi professor do seminário. E, nos quatro seguintes, foi diretor dos seminários maior e menor, de ambos. Todas as classes teve de dar com seu companheiro, o padre Berger — todas as classes eram divididas por apenas dois padres: Filosofia, Teologia, Direito canônico... tudo! E assim, após quase seis anos, Mons. Lefebvre estava completamente esgotado.

Uma noite, chamou seu companheiro: “Padre Berger, sinto que estou morrendo, dê-me os últimos sacramentos”. Padre Berger veio, mas lhe deu, ao invés dos sacramentos, um chá, e fez com que recostasse. Na manhã seguinte, percebeu que não morrera, e sim que estava completamente esgotado. Procurou Mons. Tardy e disse: “Estou completamente esgotado, não tenho mais forças”. Respondeu o Bispo: “Vá para a Floresta, e repouse”. Que alegria para Mons. Lefebvre. É disso que gostava: colocou todos seus livros em uma caixa e seguiu levando apenas seu rosário, o breviário e a Bíblia, para seu posto em Ndjolê (Maio, 1938 – Agosto, 1939), o segundo posto em Librevile (Dezembro, 1939 – Agosto, 1940), o terceiro em Donguila (Agosto 1940 – Abril de 1943), o quarto em Lambarene (Abril, 1943 – Outubro, 1945). Era um homem aberto, capaz de discutir todos os temas, e não um Bispo fechado. Em Lambarene, trabalhava o célebre doutor Schweitzer, no hospital que fundara para curar os leprosos. Schweitzer era protestante, mas travara boas relações com Mons. Lefebvre. Os missionários católicos visitavam os doentes em seu hospital, aos quais davam a extrema-unção. Schweitzer vinha tocar órgão domingo em sua Missa — o que é uma coisa permitida.

Um dia de Outubro de 1945, Marcel Lefebvre estava visitando os povos no lago do sul de Lambarene, em uma piroga, com alguns moços que o ajudavam, quando um deles fez notar que uma outra piroga da Missão se aproximava. Nela, um homem trazia uma carta para o padre Lefebvre. Aproximou-se e lhe entregou a correspondência: “O Superior Geral da Congregação do Espírito Santo gostaria muito que o padre Lefebvre regressasse para a França para tornar-se reitor do scolasticat de filosofia de Mortain”. Para Marcel Lefebvre era uma catástrofe: chorou, mas obedeceu. Uma vez nos disse que nunca se arrependeu de ter sempre obedecido, pois obedecia à vontade de Deus1

Veremos que, em toda sua vida, se meditarmos, Marcel Lefebvre sempre fez o contrário do que queria, sempre fez a vontade de Deus. Não queria ir para o Seminário em Roma, mas foi; não queria ensinar, mas passou toda vida ensinando; não queria deixar a África, mas deixou, obedeceu.

Em 1945, recém acabada a Segunda Guerra Mundial, o então padre Lefebvre retornou à França. A Normandia, noroeste da França, estava completamente destruída pela Guerra. A cidade de Mortain, onde estava a casa dos espiritanos, estava em ruínas, em cinzas. Somente ficara de pé a igreja, mas a cidade estava destruída. E assim, Mons. Lefebvre chegou em Mortain, olhou a casa dos espiritanos, não tinha mais vidros nas janelas, pois uma grande bomba havia caído sem se destruir, mas muitos obuses e centenas de projéteis haviam atingido a propriedade. Havia muito que reconstruir. Os seminaristas, mais de 150, passavam fome, pois não havia o que comer. Não havia mais comércio na cidade. Que fazer? Então, cada dia, depois da Missa, o novo reitor do seminário, que era um homem prático, pegava o carro de seu pai — que morrera no campo de concentração de Sonnenburg2 — e corria de fazenda em fazenda, por toda a campanha da Normandia, para tentar conseguir carne, queijo e batatas para seus estudantes, que imediatamente começaram a adorá-lo.

Tenho alguns testemunhos dos que então eram seminaristas, que dizem que então, naquele ano, fazia muito frio, mas que não lhes faltou o que comer. Dizem que sentiam que, então, alguém cuidava deles. Sentiam-se amados, e amavam-no em retorno. 

Este homem, professor, reitor, tenho esquecido já a África, estava um dia em seu escritório, quando, em junho de 1947, recebeu um telefonema:

— Aqui fala o Superior Geral da Congregação do Espírito Santo.
— Às suas ordens.
— Padre, o sr. foi indicado pelo Papa como Vigário-Apostólico de Dakar, Senegal.
— Alo?
— Alo, Padre, é o sr. que eu quero. O sr. foi nomeado Vigário-Apostólico de Dakar!
— (silêncio).
— Alo! Padre?
— Sim! De Dakar. Sim, sim! Meu Deus!

*  *  *

Senegal, na latitude do deserto do Saara, um país quase totalmente islâmico, muito difícil de se converter, onde Mons. Lefebvre não conhecia ninguém. Foi sagrado Bispo pelo cardeal Liénart, foi a Roma visitar o Papa Pio XII e receber suas ordens, e assim se foi a Dakar, na sua nova função.

Durante dois meses, visitou todas as dioceses, todas as missões, sacerdotes, religiosas, congregações missionárias, e por fim disse: “Eu não ficarei aqui, voltarei à França”. “Mas por que?“. “Porque não tenho missionários nem dinheiro”. Voltou à França, conseguiu dinheiro, novos missionários, voltou à África e construiu seu colégio secundário para homens, pois faltava colégios para homens.

Neste colégio formou novas vocações e novos pais de famílias. As instituições católicas, não apenas a Santa Missa, são necessárias. Era o método de Mons. Lefebvre. Sempre construía escolas, universidades, para estabelecer o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo3.

*  *  *

No ano seguinte, em outubro de 1948, Mons. Lefebvre foi nomeado pelo Papa delegado Apostólico para toda a África Francesa4. Teve de nomear quase 40 Bispos. Recolhia dinheiro e o distribuía com muito cuidado, evitando distribuí-lo para os periódicos modernistas. Assim, já na África tinha de combater contra os modernistas, que faziam revoluções em algumas dioceses5.

*  *  *

Eleito João XXIII, Mons. Lefebvre, após ter sido Bispo em Dakar por 13 anos, não foi mantido na África, mas nomeado para uma pequena Diocese na França, em Tulle. Os conhecidos perguntavam-lhe:

— Para onde foi o sr. Nomeado?
— Fui nomeado para Tulle.
— Toul?
— Não, Tulle.
— Para Toulon?
— Não, Tulle!
— Mas Tulle... não existe!
— Existe sim, procure no anuário pontifício. Está lá, Tulle.

Que humilhação, uma pequena diocese para um Arcebispo! Aceitou a humilhação, mas ficou em Tulle durante seis meses apenas. Neste período pôde reanimar seus sacerdotes, verdadeiramente desestimulados pela queda de vocações, ocasionada pelo fechamento do seminário no ano anterior. Perguntou aos padres: “Padres, que diriam se eu viesse a visitá-los em suas paróquias?”. Responderam-lhe: “Mons., o sr. nos diz que virá, mas fará como os outros, nós jamais o veremos.” Contudo, na data marcada, viam se aproximar Mons. Lefebvre em seu carro, sozinho, vindo para jantar com os padres, celebrar a Santa Missa, e, no dia seguinte, visitar as escolas, as irmãs e reanimar os sacerdotes.

*  *  *

Em Junho de 1962, Mons. Lefebvre se viu obrigado a abandonar a diocese de Tulle por ter sido eleito Superior Geral da Congregação do Espírito Santo, Congregação que contava com mais de 5.000 membros, entre sacerdotes e frades. Mas, depois de seis anos de governo na Congregação, não conseguiu impedir que a Revolução — ou seja, a entrada das novas idéias do Concílio Vaticano II — a invadisse, e por isso pediu sua exoneração6
    
Antes disso, como se sabe, Mons. Lefebvre foi um dos chefes da resistência contra o modernismo. O pensador era Dom Antônio de Castro Mayer, Mons. Lefebvre era o realizador. O secretariado, com alguns sacerdotes, preparavam os textos, e, durante a noite, no carro do Superior General, jovens brasileiros percorriam as ruas de Roma para distribuir os conselhos de votação para o dia seguinte. Conselhos para fechar a rota dos modernistas. E assim, durante dois ou três anos, Mons. Lefebvre lutou com sucesso contra os esquemas modernistas.

Ora, quando em 1968, após 6 anos de governo de sua Congregação, Mons. Lefebvre pediu sua demissão, sabia bem que jamais receberia outra diocese, pois o Papa Paulo VI o conhecia bem, e não gostava dele. Foi assim que, com 63 anos de idade, Mons. Lefebvre tornou-se um Bispo sem trabalho, um desempregado.

Antes de pedir sua demissão, disse ao padre Michael O’Carroll (que visitei em Dublin, Irlanda): “Se um dia não for mais Superior Geral, vou fundar um Seminário Internacional, e, em até dez anos, terei 100-150 seminaristas.” — Foi o que fez.

No ano seguinte, em 1969, fundou, com permissão do Bispo de Fribourg, Mons. Charrière, o Seminário São Pio X, e eu fui um dos nove seminaristas que lá ingressaram no dia 13 de Outubro, dia de Nossa Senhora de Fátima.     

Ano seguinte, Mons. Lefebvre fundou a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, com a aprovação de Mons. Charrière. Dizia Dom Lefebvre que jamais havia fundado algo sem a permissão do Bispo local, pois esta tinha de ser uma obra da Igreja. Jamais teve idéias pessoais, mas apenas os princípios da Igreja.

Contudo, o sucessor de Mons. Charrière, Mons. Mamie, liberal, após cinco anos de existência da Fraternidade, retirou a permissão. Mons. Lefebvre continuou dizendo: não é obra minha, mas é o combate pela Igreja. E prosseguiu no combate até as Sagrações dos 5 Bispos em 1988, para simplesmente continuar a Igreja na confissão inequívoca da Fé Católica.

*  *  *

Talvez tenha sido da sua formação no seminário, sob a direção do Padre Le Floch, que ele decididamente comprometeu-se com o Combate. Prometeu combater com o Papa e pelo Papa, pela Igreja. Não sabia como, nem quando, mais sabia que um dia teria de combater.

A nós, dizia Mons. Lefebvre, que estamos sempre em estado de cruzada. E é nesse estado de cruzada que temos de continuar.  

Agradeço pela atenção.
  1. 1.[N. da P.] Dom Tissier de Mallerais, escreve em sua biografia sobre o Arcebispo: “Só um missionário pode compreender o despedaçamento [que Mons. Lefebvre sentiu]: após ter dado seu suor e coração à uma terra distante, às almas, fazer-se fango entre os fangosgaloa entre os galoões, ter de abandonar tudo, retornar à França, onde não se queria mais retornar, é duro, muito duro”. Contudo, diz o biógrafo, Mons. Lefebvre, após ler a carta, “rapidamente se restabeleceu e pronunciou seu fiat.” (Marcel Lefebvre, Une vie, pág 146).
  2. 2.[N. da P.] Após ter colaborado corajosamente com os que se opunham aos invasores nazistas, René Lefebvre foi pego e encarcerado pela Gestapo. Sua conduta no cárcere, como nos conta o biógrafo de Mons. Lefebvre, é verdadeiramente heróica, “o frio, a umidade, os furúnculos não conseguiam vencer nem sua piedade — ele rezava sem cessar o terço — nem sua confiança na vitória de sua pátria.” (ibid., pág. 143-144)
  3. 3.[N. da P.] Algumas estatísticas interessantes: “sob o episcopado de Mons. Lefebvre, o número de padres passou de 42 (dos quais 3 eram africanos) para 110 (dos quais 10 eram africanos), o de frades, de 14 (sendo 7 africanos) para 33 (sendo 18 africanos) e o de irmãs, de 120 (das quais 40 eram africanas) para 250 (das quais 60 eram africanas)”. Isso tudo em apenas 13 anos. Como diz o biógrafo, seus resultados foram um forte estimulo para as demais dioceses (ibid, pág. 192).
  4. 4.[N. da P.] A tarefa era enorme, significava ser nomeado representante do Papa em uma diocese, 26 vicariatos e 17 prefeituras apostólicas, numa área que ia do Marrocos e do Saara à Madagascar, passando pela Somália e Camarões de língua francesa — aliava às funções pastorais funções de jurisdição sobre 44 circunscrições eclesiásticas e de relações diplomáticas com o governo francês; a área depende da delegação apostólica de Dakar compreendia quase a metade do continente africano.
  5. 5.[N. da P.] Como delegado Apostólico, Mons. Lefebvre igualou os excelentes resultados obtidos na diocese de Dakar, como se vê nas estatísticas seguintes: entre 1948-1958, o número de batizados por ano aumentou mais de 50%; o número de sacerdotes africanos passou de 244, em 1948, para 455, em 1958. Mas, o principal indício do alto valor de seu trabalho, é esta declaração que Pio XII fez a Mons. Veuillot: “Mons. Lefebvre é certamente o mais eficaz e o mais qualificado dos delegados apostólicos. ” (ibid., pág. 247)
  6. 6.[N. da P.] O resultado da invasão destas novas idéias nos diz o próprio Mons. Lefebvre: “Naquele momento, havia 5.200 membros em nossa congregação; hoje há menos de 4.000 (em 1975). Esse foi o resultado! A ruína pura e simples de nossa Congregação. Entreguei minha demissão porque não queria que a história pudesse dizer que foi Mons. Lefebvre quem arruinou a Congregação”  (v. “Pela Honra da Igreja”, conferência de Mons. Lefebvre)