sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

CARTA DE PAULO VI AO PROFESSOR ÉTIENNE GILSON


Ao venerado Professor Étienne Gilson, nosso Filho em Jesus Cristo



      O passar do tempo não eclipsou, malgrado vossa modéstia, os méritos que vós adquiristes por meio da vossa longuíssima e vastíssima atividade intelectual, assim como por meio da vossa fidelidade exemplar à Igreja. Enquanto damos graças ao Senhor por estes anos muito bem preenchidos e que contribuíram de forma muito eficaz à irradiação do pensamento cristão, temos hoje em dia que vos exprimir pessoalmente uma estima que acalentamos há muito tempo por vós e um reconhecimento que vos deve a Igreja.
      Vosso ensinamento nas Universidades francesas, notavelmente na Sorbonne e no Collège de France, ou ainda em Harvard, ou em Toronto, onde fundastes o “Institute of Medieval Sciences”, sem esquecer as lições que destes na nossa Universidade de Latrão; os “Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen-Age”, fundados e durante muito tempo dirigidos sob vossos cuidados; enfim, e sobretudo, as densas obras que tendes publicado, vos classificam no primeiro lugar entre aqueles que iniciaram nossos contemporâneos nas riquezas, muitas vezes esquecidas ou desdenhadas, da filosofia medieval. A Igreja, especialista na humanidade, só pode se rejubilar.
      Entre os diversos representantes desta filosofia, as vossas preferências se orientam em primeiro lugar para Santo Tomás. Soubestes pôr em evidência a originalidade do tomismo ao mostrar como o Doutor Angélico – iluminado pela revelação cristã, em particular pelo dogma da criação e pelo que vós denominastes a “metafísica do Êxodo” – chegou à noção geral e verdadeiramente inovadora do “ato de ser”, ipsum esse. Desde logo, a sua filosofia se situava em um plano completamente diferente da de Aristóteles. Desta forma, revivestes uma fonte de sabedoria da qual nossa sociedade técnica tirará um grande proveito, fascinada como é pelo “ter”, mas muitas vezes cega com relação ao sentido do “ser”, e às suas raízes metafísicas.
      O vosso interesse não se limitou, por outro lado, a Santo Tomás. Santo Agostinho, são Bernardo, são Boaventura, Duns Scott foram igualmente objetos dos vossos estudos. Destes trabalhos, como daqueles, mais gerais, sobre a “filosofia da Idade Média” e sobre o “espírito da filosofia medieval”, uma grande idéia se depreende que nos é particulamente cara: a fé não é, para o pensamento, para a cultura humana, um entrave ou um abafamento, mas uma luz e um estimulante. É dentro do contexto da teologia, à luz da Revelação, que o pensamento filosófico, de uma forma notável em Santo Tomás, atingiu os seus picos. Como gostaríamos que as novas gerações, fatigadas das ideologias atéias, redescobrissem esta escola de fecundidade da fé ao mesmo tempo que a confiança na razão, que é um dom do Criador!
      Vossa obra, de resto tão rica e variada, e que vos valeu depois de muito tempo a honra de ter uma cadeira na Academia Francesa, de se tornar membro da Academia romana de Santo Tomás de Aquino e da Religião Católica, e de receber tantas distinções universitárias, mostra bem como a fé reconhece e favorece o mais autêntico humanismo. Vossa visão de filósofo e de historiador se voltou aos assuntos mais diversos, desde que eles tocassem a qualidade do homem e da civilização: as letras – como não evocar, aqui, vossos estudos sobre Dante? -, a arte, a linguagem, a biologia, a cultura de massa foram objetos de vossa reflexão e de vossas publicações. Como vosso amigo Maritain, soubestes fazer os cristãos de hoje, e muitos homens de boa vontade, tantas vezes angustiados e perdidos, ouvirem palavras de bom senso, de sabedoria, de fidelidade.
      Acima de tudo, caro professor – é um dos pontos que mais nos preocupa na conjuntura atual – vós realizastes vossa atividade e manifestastes vossa fé cristã no seio da Igreja Católica que sempre considerastes como mãe. Recebestes dela, com confiança, tudo o que ela podia vos dispensar dos mistérios de Deus. Trabalhastes lealmente por ela, lhe prestando um dos serviços mais eminentes que requer a sua pastoral do pensamento. Trouxestes um testemunho em seu favor. Sofrestes, e sofrestes com ela, com o que a desfigurava. Não cessastes de lhe trazer confiança e afeição.
      Que o Senhor faça germinar o que tendes semeado com tanta paciência! Que ele faça frutificar vosso testemunho! Que ele suscite outras testemunhas vigorosas do pensamento cristão! E que ele vos cumule, a vós mesmo, de Sua paz! De nossa parte, de todo o coração, em penhor a todos estes dons e em testemunho de nossa fiel veneração, nós vos concedemos nossa afetuosa Bênção Apostólica.

Dado no Vaticano, 8 de agosto de 1975.

PAULUS PP. VI

REPORTAGEM SOBRE A VIDA DE IRMÃ DULCE






segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O PAPA QUE LIBERTOU A EUROPA DO COMUNISMO


Entrevista com Dom Mariusz Frukacz, redator do semanário Niedziela


Por Antonio Gaspari
ROMA, sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011 (ZENIT.org) - Em 1º de maio, Bento XVI beatificará em Roma o seu predecessor, Karol Wojtyla.
Para ajudar a entender melhor as virtudes e a santidade de João Paulo II, ZENIT publicará diversos testemunhos de pessoas que o conheceram e conviveram com ele.
Começamos entrevistando Mariusz Frukacz, sacerdote da arquidiocese de Częstochowa, redator do semanário católico Niedziela e correspondente diocesano da Agência Católica de Informação.

ZENIT: A Polônia ficou submetida duramente ao regime soviético. O que significou para o povo a eleição de João Paulo II como papa?
Pe. Frukacz: Em 1978, quando o Card. Wojtyła foi eleito Pontífice com o nome de João Paulo II, a Polônia estava esmagada pelo regime comunista. A eleição de João Paulo II, o primeiro Pontífice eslavo, teve uma grande relevância não só para a Polônia, mas para toda a Europa central e oriental. O povo na Polônia, mas também nos outros países submetidos ao regime soviético, vislumbrou, além da grande alegria, também o espírito da liberdade. João Paulo II trouxe consigo a fidelidade ao Evangelho e a coragem da fé na verdade. Para mim, as palavras “Não tenham medo, escancarem as portas para Cristo” deram vida às mudanças da época na Polônia e em toda a Europa. A eleição de João Paulo II significou o início da primavera da liberdade. A eleição daquele Pontífice deu ao povo polonês a força espiritual e moral para passar da resistência contra a injustiça para a vitória do bem sobre o mal. João Paulo II deu a largada para a revolução espiritual e moral na Polônia e nos outros países da Europa central e oriental.
ZENIT: É verdade que os russos não invadiram a Polônia porque Wojtyla era o Papa?
Pe. Frukacz: Esta pergunta não tem uma resposta simples. Ainda não conhecemos todos os documentos do regime comunista, e pouco se sabe do período em que o general Wojciech Jaruzelski instaurou o estado de guerra, em que foram suspensos os direitos civis, em que os ativistas do Solidarność foram presos. Eu acho que alguns historiadores têm razão quando escrevem que os russos não invadiram a Polônia porque não queriam repetir a situação de 1968, quando invadiram a Tchecoslováquia. O general Wojciech Jaruzelski afirma que no dia 13 de dezembro de 1981 teve que instaurar o estado de guerra na Polônia porque, se não, os russos teriam invadido o país. Hoje sabemos que Jaruzelski não falou a verdade. Do ponto de vista de alguns documentos e com base em testemunhos, os historiadores da Polônia sustentam que o regime comunista, em especial Leonid Brezniev, o primeiro-secretário do partido comunista da União Soviética, queria que o general Jaruzelski e o regime comunista na Polônia resolvessem o problema do Solidarność com suas próprias forças. Sabemos também que, durante o estado de guerra na Polônia, João Paulo II mantinha estreitos contatos diplomáticos com o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, e que escreveu a Leonid Breżniev para convencê-lo a não invadir a Polônia. Apesar disso, não podemos dizer com suficiente certeza que os russos não invadiram a Polônia porque o Card. Wojtyla era Papa.
ZENIT: O nazismo, primeiro, e o comunismo, depois, tentaram arrancar as raízes cristãs e apagar a fé católica do povo polonês. Por que não conseguiram? 
Pe. Frukacz: É verdade que o nazismo e o comunismo tentaram arrancar as raízes cristãs e apagar a fé católica do povo polonês. E não conseguiram. Penso que o recurso decisivo que salvou a fé católica foram as famílias polonesas, que respeitaram e transmitiram aos filhos o patrimônio espiritual das gerações precedentes. Nas famílias cristãs polonesas, durante o regime nazista e depois no comunista, era vivo e forte o vínculo da fé com a cultura cristã e a cultura nacional. Para o povo polaco, a fé tem a sua importância também na vida social. Não é uma coisa privada. A fé tem uma dimensão social e nacional. Para os polacos, a fé é vinculada ao patriotismo verdadeiro, que é amor por Deus e pela Pátria.
Acho também que um grande papel para manter fortes as raízes cristãs na sociedade polaca foi desempenhado pelos movimentos e associações cristãs, como o Movimento Luz e Vida, do Servo de Deus Franciszek Blachnicki. Também teve muita importância o Clube da Inteligência Católica, a pastoral acadêmica e as semanas da cultura cristã, quando os artistas apresentavam e transmitiam nas igrejas a cultura e a literatura nacional para os fiéis.
Outro papel-chave foi do Card. Stefan Wyszyński, Primaz do Milênio. Foi ele que organizou os "Votos de Jasna Góra" em 1956, a novena pelos mil anos do cristianismo na Polônia (1957-1966). O Card. Wyszyński aprofundou e difundiu a "Teologia da Nação" para reforçar a identidade católica dos poloneses. João Paulo II também testemunhou a relevância e a grandeza da figura de Wyszyński quando disse: “Não teria havido um Pontífice polaco no trono de Pedro se não fosse pela fé do Card. Wyszyński”.
ZENIT: Primeiro a beatificação de Jerzy Popieluszko, agora a de Karol Wojtyla, dois heróis modernos. Existem muitos elementos comuns na coragem e no testemunho heroico de ambos. Pode ressaltá-los?
Pe. Frukacz: Claro, são muitos elementos comuns. O primeiro, eu considero, é a forte fé. O beato Popiełuszko e João Paulo II são homens de fé no sentido de total obediência a Deus. Os dois são também homens que realizaram na vida a verdadeira fidelidade ao Evangelho e aos valores cristãos. Em nome do Evangelho e do respeito aos valores cristãos na esfera da vida pública, eles defenderam os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana. Os dois deram verdadeiro testemunho de Cristo até derramar o sangue. O beato Jerzy Popiełuszko foi morto pelos serviços secretos comunistas. João Paulo II sofreu um atentado na Praça de São Pedro no dia 13 de maio de 1981.
Don Popiełuszko e João Paulo II promoveram os direitos humanos, os direitos dos trabalhadores e a dignidade das pessoas humanas, tudo à luz do Evangelho. Para a Polônia e para o mundo inteiro, eles testemunharam a coragem, a fidelidade a Deus, à Cruz de Cristo e ao Evangelho, o amor por Deus e pela Pátria. Os dois representaram o patriotismo em sentido cristão, como virtude cultural e social. Acho que um elemento comum aos dois é a espiritualidade mariana e a confiança total em Maria. Para don Popiełuszko, o exemplo era São Maximiliano Kolbe, e para João Paulo II era São Luis Maria Grignion de Montfort.
ZENIT: O senhor conheceu e conviveu com Karol Wojtyla. Quais são, do seu ponto de vista, as qualidades singulares de João Paulo II?
Pe. Frukacz: Meu primeiro encontro com João Paulo II foi na viagem apostólica à Polônia, em junho de 1979. Eu tinha 8 anos. Me lembro bem da figura branca com os braços abertos. Me lembro do clima de alegria daqueles dias históricos. Me lembro também das lágrimas dos meus pais, especialmente do meu pai, Marian, que fazia parte do Solidarność. Nos anos seguintes, participei com os meus familiares nos outros encontros com João Paulo II em Jasna Góra e em Częstochowa, durante as viagens de 1983, 1987, 1991, 1997, 1999.
Muito importante também para a minha espiritualidade foi o encontro em agosto de 1991, quando João Paulo II veio abençoar o nosso Seminário Maior em Częstochowa. Eu estava no segundo ano. As palavras do papa me bateram muito quando ele disse: “Com dedicação total, própria da postura de Maria sob a Cruz... proclamar o Evangelho do Seu Filho e testemunhá-lo na vida, com generosidade, sem nenhum compromisso com o espírito deste mundo e sem medo nenhum”.
O Papa polaco foi um homem de oração. Está viva na minha alma a Missa que concelebrei com João Paulo II na capela privada do Palácio Apostólico, em 7 de setembro de 2000. Penso que João Paulo II foi um homem de genuína alegria cristã. Durante os meus estudos em Roma (2000-2007) pude encontrá-lo e falar com ele na época de Natal, e me lembro bem dele entoando conosco os cantos de Natal. Penso que João Paulo II foi um homem de grande amor ao próximo, a Cristo e à Igreja. Ele amava muito Maria, foi um homem do terço. Sempre trago comigo o terço que ele me deu.
ZENIT: Quantos poloneses virão a Roma para a beatificação de João Paulo II?
Don Frukacz: Não dá para dizer a quantidade certa, mas posso dizer que a Polônia toda está em movimento. A mídia polonesa diz que, para a beatificação de João Paulo II, virão a Roma mais de um milhão de peregrinos da Polônia.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A ÚNICA IGREJA DE JESUS CRISTO



      Este artigo se deve a D. Boaventura Kloppenburg O.F.M., Bispo Auxiliar  de Novo Hamburgo (RS), que, com grande acume teológico, estuda certo relativismo eclesiológico que vai sendo difundido em nossos dias. Com efeito, segundo alguns, as diversas denominações cristãs seriam equivalentes entre si, de modo que ser católico, ser batista, ser presbiteriano, ser pentecostal... não faria diferença diante de Deus. Segundo outros, nenhuma denominação cristã preenche todas as exigências da Igreja que Cristo quis fundar, de modo que esta só se realizará no fim dos tempos. Como fundamento destas proposições errôneas, muitos invocavam dizeres do Concílio do Vaticano II:  "A Igreja de Jesus Cristo subsiste na Igreja  Católica, Apostólica confiada a Pedro". Ora Frei Boaventura, como teólogo perito (expert) do Concílio do Vaticano II, explica o autêntico sentido de tal passagem do Concílio: este quis afirmar que a Igreja Universal, confiada a Pedro, preenche todos os requisitos da Igreja fundada por Cristo, ao passo que as outras denominações cristãs só satisfazem alguns (ora mais, ora menos numerosos) desses requisitos.


Agradecemos a D. Boaventura a valiosa colaboração.

1.    O problema

      "Até agora estávamos acostumados a nos considerar com a Igreja, única e verdadeira herança do legado apostólico da fé cristã", acusa o Pe. Paulo Homero  Gozzi, S.S.S., na revista Vida Pastoral, de julho-agosto de 1986, página 2. Tal modo  de ver, porém, garante, já não seria a doutrina oficial da Igreja Católica desde o Concílio Vaticano II. Cita então o texto de um ante-projeto de documento sobre a  Igreja apresentado ao Concílio em 1962, no qual se ensinava que somente a Igreja Católica é a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Mas este texto, informa, "foi totalmente rejeitado pelos Bispos", e "o que não se conseguiu mudar em quinhentos anos, alterou-se completamente em apenas dois anos de debates". A doutrina certa do Vaticano II agora seria esta: "A Igreja de Cristo não é mais a Igreja Romana, nem se identifica mais com ela pura e simplesmente, mas subsiste nela". Depois explica: "O Concílio reconhece e admite que pertencem à única, verdadeira e indivisível Igreja de Cristo todos os batizados que professam a verdade do Deus Trino e confessam a Jesus Cristo como Senhor e Salvador, não só individualmente, mas também reunidos em assembléias (Decreto sobre o Ecumenismo, UR 1). Isto porque nasceu também uma nova consciência da fundação da Igreja e da entrega de seu governo ante-projeto rejeitado, mas sobre o Apóstolos e seus sucessores. O papel de Pedro é coordenar o grupo de seus irmãos Apóstolos para mantê-lo unido (cf. Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium, III, n. 18)".

      Assim manipula-se o Concílio. O que lhe é atribuído no número 1 do Decreto sobre o Ecumenismo, lá não está. Se estivesse, seria realmente doutrina inaudita. O documento, na alínea 2 do citado número 1, fala não da Igreja, mas do movimento ecumênico, afirmando então que deste movimento participam "os que invocam o Deus Trino e confessam a Jesus como Senhor e Salvador, não só individualmente, mas também reunidos em assembléias". O articulista simplesmente trunca o texto do Vaticano II. E o que afirma com base no número 18 da Lumen Gentium (LG), também se distancia da doutrina do Concílio. No citado número 18, alínea segunda, o Vaticano I sobre a instituição, perpeitude , poder a natureza do sacro Primado do Romano Pontífice, propondo-a "novamente para ser criada firmemente por todos os fiéis". Deste contexto conclui o autor que o governo da Igreja não mais repousa sobre Pedro e seus sucessores, mas sobre os Apóstolos e seus sucessores! O papel de Pedro seria apenas o de "coordenar o grupo de seus irmãos Apóstolos para mantê-lo unido". Na realidade, a doutrina sobre o Primado de jurisdição, explicitamente reafirmada pelo Vaticano II, vai muito além da mera função de coordenação. Definiu o Vaticano I que ao Sucessor de Pedro não cabe apenas a tarefa de inspeção ou direção, e sim "o pleno poder de jurisdição sobre toda a Igreja, não só nas coisas referentes à fé e aos costumes, mas também nas que se referem à disciplina e ao governo da Igreja universal" (Dz 1831). Sem limite de tempo, pessoa, lugar e coisas, seu poder se estende individualmente ou coletivamente sobre todos os fiéis, todos os pastores todos os ritos, em questões de doutrina da fé, de moral, de governo, de liturgia, de costumes (Dz 1827). E o Vaticano II, na Lumen Gentium, n. 22b insiste neste ensinamento: "O Colégio ou o Corpo episcopal não tem autoridade se nele não se considerar incluído, como cabeça, o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, e permanecer intacto o poder primacial do Papa sobre todos, quer Pastores quer fiéis. Pois o Romano Pontífice, em virtude de seu múnus de Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja, possui na Igreja poder pleno, supremo e universal. E ele pode sempre livremente exercer este seu poder".

      Nem é verdade que aquele texto provisório apresentado em 1962 ao Concílio "foi totalmente rejeitado pelos Bispos", pelo simples fato de jamais Ter sido objeto de votação.   

      Mais desconcertante, todavia, é a conclusão que o articulista da Vida Pastoral tira da substituição do verbo "est" (é) pelo verbo "subsistit in" no atual número 8, segunda alínea, da Lumen Gentium: "A Igreja de Cristo não é mais a Igreja Romana, nem se identifica mais com ela pura e simplesmente, mas subsiste nela". Também o Sr. Luiz Carlos Araújo, Profecia e Poder na Igreja (Paulinas 1986) argumenta com o "subsisti in", para inferir que "todas as Igrejas cristãs estão sendo, em graus diferentes, a Igreja de Cristo" (p. 21). Já antes, em Igreja: Carisma e Poder (Petrópolis 1982), Frei Leonardo Boff, O.F.M., se baseara no mesmo "subsistit in" para deduzir que a Igreja de Cristo" pode subsistir também em outras Igrejas cristãs" (p. 125). Nega-se assim a doutrina de fé sobre a unicidade da Igreja de Cristo.

2.    Que ocorreu de fato no Concílio?

      Na Comissão de Doutrina, na qual eu estava presente na qualidade de "peritus", encarregada da redação do texto sobre a Igreja, discutia-se a segunda alínea do número 8. Nela se ensinava que a única Igreja de Jesus Cristo, que no Símbolo confessamos una, santa, católica e apostólica e que nosso Salvador, depois de sua gloriosa ressurreição, entregou a Pedro para a apascentar e confiou a ele aos demais Apóstolos para a propagar e reger, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, "é a Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, embora fora de sua visível estrutura se encontrem vários elementos de santificação e verdade". Após demorado debate, do qual participei pessoalmente, o "este" foi substituído por "subsistit in". Todo o resto do texto ficou exatamente como estava e ainda hoje está. Por que se fez a mudança? Na relação oficial, a Comissão explica que com este verbo o texto se adaptou melhor à afirmação acerca dos "elementos eclesiais de santificação e verdade" presentes também em outras denominações cristãs, algumas das quais, como as orientais, sempre foram consideradas até mesmo como "Igrejas" (a locução "Igrejas Orientais" não foi inventada pelo Vaticano II): "ut expressio melius concordet cum affirmatione de elementis ecclesiasticis quae alibi adsunt" (este grifo está no original).

      Era, pois, intenção do Concílio Vaticano II ensinar que a una e única Igreja, como Jesus Cristo a quis e fundou, existe historicamente e como tal é hoje cognoscível; e que sua forma existencial concreta é a Igreja que está sendo dirigida pelo Sucessor de Pedro. Ao mesmo tempo, porém, reconhecida que vários elementos ("plura elementa") eclesiais queridos por Cristo estão presentes ("adsunt") em Igrejas e Comunidades separadas de Roma. Isto é: a "eclesialidade" não se identifica sem mais ("est") com a Igreja Católica, mas incompletamente ou imperfeitamente ((segundo o maior  ou menor número de elementos eclesiais presentes);  ela, a eclesialidade, se encontra outrossim nas Igrejas ou Comunidades separadas. Num voto modificativo (o "placet iuxta modum") 19 votantes sugeriram então que se dissesse "subsistit integro modo in", isto é, a Igreja de Jesus Cristo se realiza de modo completo, perfeito ou pleno na Igreja Católica, insinuando que ela se realiza nas outras denominações de modo não perfeito ou pleno. A Comissão respondeu que tal doutrina se encontra mais adiante, no número 14. Veja-se sobre isso meu estudo A Eclesiologia do Vaticano II, pp. 59-64, livro que a Editora Vozes retirou do comércio.

      Esta, pois, é a doutrina clara e firme do Concílio Vaticano II: "Unicamente por meio da Igreja Católica, que é o auxílio geral da salvação, se pode conseguir a total plenitude dos meios de salvação. Cremos que o Senhor confiou todos os bens da Nova Aliança a um único Colégio apostólico, a cuja testa está Pedro, a fim de constituir na terra um só Corpo de Cristo, ao qual é necessário que se incorporem plenamente todos os que de algum modo pertencem ao Povo de Deus" (UR 3e.).

3.    Documentos complementares

     Quando Leonardo Boff, no citado livro, concluiu do "subsistit in" que a Igreja de Cristo" pode subsistir também em outras Igrejas cristãs", um documento especial de Santa Sé sobre aquele livro (Notificação da Congregação para a Doutrina da Fé, de 11-03-1985) rejeitou semelhante exegese conciliar como "exatamente contrária à significação autêntica do texto conciliar". E a Notificação sobre o livro de Leonardo Boff explica: "O Concílio tinha escolhido a palavra subsistit exatamente para esclarecer que há uma única subsistência da verdadeira Igreja, enquanto fora de sua estrutura visível existem somente elementa Ecclesiae, que - por serem elementos da mesma Igreja - tendem e conduzem em direção à Igreja Católica". E manda ver a Declaração Mysterium Ecclesiae, de 24-06-1973, na qual se reafirmava:

      "Os católicos  têm o dever de professar que, por misericordioso dom divino, pertencem à Igreja que  Cristo fundou e que é dirigida pelos sucessores de Pedro e dos demais Apóstolos, nos quais persiste íntegra e viva a primigênia instituição e a doutrina da comunidade apostólica e o patrimônio perene da verdade e a santidade da mesma Igreja. Por  isso não é lícito aos fiéis imaginar que a Igreja de Cristo seja simplesmente um conjunto - sem dúvida dividido, apesar de conservar ainda alguma unidade - de Igrejas e comunidades eclesiais; e de nenhuma maneira são livres para opinar que a Igreja  não exista mais hoje em lugar nenhum, de forma que se deva considerá-la como uma meta a ser procurada por todas as Igrejas e comunidades".

      Pois, como ensina o Concílio, a Igreja, de fato, se encontra plenamente lá onde os sucessores de Pedro e dos outros Apóstolos realizam visivelmente a continuidade com as origens (LG 8b); e a unidade, que é um dom de Deus, de fato foi dada a esta Igreja "e nós cremos que ela subsiste inamissível na Igreja Católica" (UR 4c), cotada "de toda a verdade revelada por Deus e de todos os meios da graça" (ib 4f). E o Concílio  Vaticano II é categórico quando assevera: "Por isso não  podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja Católica foi fundada por Deus mediante Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiserem nela entrar perseverar" (LG 14a). Mais severo ainda, adverte: "Não se salva contudo, embora incorporado à Igreja, aquele que, não perseverando na caridade, permanece no seio da Igreja "com o corpo; mas não com o coração". Lembrem-se todos os filhos da Igreja de que a condição exímia em que estão se deve não a seus próprios méritos, mas a uma peculiar graça de Cristo. Se a ela não corresponderem por pensamentos, palavras e obras, longe de se salvarem, serão julgados com maior severidade" (LG 14b).

      Em documento de outra natureza, a Declaração Dignitatis humanae, sobre a Liberdade Religiosa, o Concílio não é menos claro, porém mais positivo: "Professa em primeiro lugar o Sacro Sínodo que o próprio Deus manifestou ao gênero humano o caminho pelo qual os homens, servindo a Ele, pudessem salvar-se e tornar-se felizes em Cristo. Cremos que esta única verdadeira Religião se encontra (subsistere) na Igreja Católica e Apostólica" (n. 1b).

      A Pontifícia Comissão  Teológica Internacional publicou no ano passado Temas Seletos de Eclesiologia (veja-se o texto completo português em SEDOC de abril de 1986, 921-966), dedicando o décimo capítulo ao tema da unicidade da Igreja. Sua conclusão é esta: "De nossa análise consta que a  autêntica Igreja não pode ser entendida como uma utopia que visaria a atingir todas as comunidades cristãs hoje divididas e separadas. A verdadeira Igreja, bem como sua unidade, não são exclusivamente uma realidade futura. Elas já se encontram na Igreja Católica, na qual está realmente presente a Igreja de Cristo".

4.    Conclusão

      A doutrina oficial da Igreja, por conseguinte, é sem dúvida esta: a única Igreja de Jesus Cristo de fato subsiste de modo pleno somente na Igreja Católica; nas outras Igrejas ou Comunidades separadas da Sé Apostólica de Pedro, ela subsiste apenas parcialmente, em diferentes graus de perfeição, segundo o maior ou menor número de elementos eclesiais substanciais nelas presentes.

      E porque a Igreja de Jesus Cristo é uma só, a que foi edificada sobre Pedro e que o próprio Salvador denomina "minha Igreja" (Mt 16, 18), e unicamente nela se encontra a plenitude dos meios de salvação e santificação, exorta o Documento de Puebla no. N. 225: "Temos o dever de proclamar a excelência de nossa vocação à Igreja Católica", já que, como ensina belamente no n. 227, ela "é o lugar onde se concentra ao máximo a ação do Pai, que na força do Espírito de amor, busca solícito os homens para partilhar com eles - em gestos de indizível ternura - sua própria vida trinitária".

      Nossa abertura ao diálogo ecumênico não deve ser motivo para atenuar a clareza e a firmeza de nossa fé católica. Ainda neste ponto o Concílio Vaticano II é firme quando nos dá a seguinte regra: "É absolutamente necessário que a doutrina inteira seja lucidamente exposta. Nada é tão alheio ao ecumenismo quanto aquele falso irenismo, pelo qual a pureza da doutrina católica sofre detrimento e seu sentido genuíno e certo é obscurecido" (UR 11).

A única Igreja de Jesus Cristo Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb.
Nº 293 - Ano 1986 - Pág. 458.


10 PRINCÍPIOS CONSERVADORES




por Russel Kirk
Tradução de Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior
Fonte: http://www.kirkcenter.org/kirk/ten-principles.html


      Não sendo nem uma religião nem uma ideologia, o conjunto de opiniões designado como conservadorismo não possui nem uma Escritura Sagrada nem um Das Kapital que lhe forneça um dogma. Na medida em que seja possível determinar o que os conservadores crêem, os primeiros princípios do pensamento conservador provêm daquilo que professaram os principais escritores e homens públicos conservadores ao longo dos últimos dois séculos. Sendo assim, depois de algumas observações introdutórias a respeito deste tema geral, eu irei arrolar dez destes princípios conservadores.
Talvez seja mais apropriado, a maior parte das vezes, usar a palavra “conservador” principalmente como adjetivo. Já que não existe um Modelo Conservador, sendo o conservadorismo, na verdade, a negação da ideologia: trata-se de um estado da mente, de um tipo de caráter, de uma maneira de olhar para ordem social civil.
      A atitude que nós chamamos de conservadorismo é sustentada por um conjunto de sentimentos, mais do que por um sistema de dogmas ideológicos. É quase verdade que um conservador pode ser definido como sendo a pessoa que se acha conservadora. O movimento ou o conjunto de opiniões conservadoras pode comportar uma diversidade considerável de visões a respeito de um número considerável de temas, não havendo nenhuma Lei do Teste (Test Act)1 ou Trinta e Nove Artigos (Thirty-Nine Articles)2 do credo conservador.
      Em suma, uma pessoa conservadora é simplesmente uma pessoa que considera as coisas permanentes mais satisfatórias do que o “caos e a noite primitiva”3. (Mesmo assim, os conservadores sabem, como Burke, que a saudável “mudança é o meio de nossa preservação”). A continuidade da experiência de um povo, diz o conservador, oferece uma direção muito melhor para a política do que os planos abstratos dos filósofos de botequim. Mas é claro que a convicção conservadora é muito mais do que esta simples atitude genérica.
      Não é possível redigir um catálogo completo das convicções conservadoras; no entanto, ofereço aqui, de forma sumária, dez princípios gerais; tudo indica que se possa afirmar com segurança que a maioria dos conservadores subscreveria a maior parte destas máximas. Nas várias edições do meu livro The Conservative Mind, fiz uma lista de alguns cânones do pensamento conservador – a lista foi sendo levemente modificada de uma edição para a outra edição; em minha antologia The Portable Conservative Reader, ofereço algumas variações sobre este assunto. Agora, lhes apresento uma resenha dos pontos de vista conservadores que difere um pouco dos cânones que se encontram nestes meus dois livros. Por fim, as diferentes maneiras através das quais as opiniões conservadoras podem se expressar são, em si mesmas, uma prova de que o conservadorismo não é uma ideologia rígida. Os princípios específicos enfatizados pelos conservadores, em um dado período, variam de acordo com as circunstâncias e as necessidades daquela época. Os dez artigos de convicções abaixo refletem as ênfases dos conservadores americanos da atualidade.

1 Test Act - Lei inglesa de 1673 que exigia dos titulares de cargos civis e militares professarem a fé da Igreja Anglicana através de uma fórmula de juramento (N. do T.).
2 Declaração oficial da doutrina da Igreja Anglicana (N. do T.).
3 A frase "Chaos and old Night" provém do poema épico de John Milton Paradise Lost (Book I; line 544). Milton usa esta frase para se referir à “matéria” a partir da qual Deus ordenou e criou o mundo (N. do T.).

Primeiro, um conservador crê que existe uma ordem moral duradoura.

      Esta ordem é feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante e as verdades morais são permanentes.
      Esta palavra ordem quer dizer harmonia. Há dois aspectos ou tipos de ordem: a ordem interior da alma e a ordem exterior do estado. Vinte e cinco séculos atrás, Platão ensinou esta doutrina, mas hoje em dia até as pessoas instruídas acham difícil de compreendê-la. O problema da ordem tem sido uma das principais preocupações dos conservadores desde que a palavra conservador se tornou um termo político.
      O nosso mundo do século XX experimentou as terríveis conseqüências do colapso na crença em uma ordem moral. Assim como as atrocidades e os desastres da Grécia do V século a.C., a ruína das grandes nações, em nosso século, nos mostra o poço dentro do qual caem as sociedades que fazem confusão entre o interesse pessoal, ou engenhosos controles sociais, e as soluções satisfatórias da ordem moral tradicional.
      Foi dito pelos intelectuais progressistas que os conservadores acreditam que todas as questões sociais, no fundo, são uma questão de moral pessoal. Se entendida corretamente esta afirmação é bastante verdadeira. Uma sociedade onde homens e mulheres são governados pela crença em uma ordem moral duradoura, por um forte sentido de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra, será uma boa sociedade – não importa que mecanismo político se possa usar; enquanto se uma sociedade for composta de homens e mulheres moralmente à deriva, ignorantes das normas, e voltados primariamente para a gratificação de seus apetites, ela será sempre uma má sociedade – não importa o número de seus eleitores e não importa o quanto seja progressista sua constituição formal.

Segundo, o conservador adere ao costume, à convenção e à continuidade.

      É o costume tradicional que permite que as pessoas vivam juntas pacificamente; os destruidores dos costumes demolem mais do que o que eles conhecem ou desejam. É através da convenção – uma palavra bastante mal empregada em nossos dias – que nós conseguimos evitar as eternas discussões sobre direitos e deveres: o Direito é fundamentalmente um conjunto de convenções. Continuidade é uma forma de atar uma geração com a outra; isto é tão importante para a sociedade com o é para o indivíduo; sem isto a vida seria sem sentido. Revolucionários bem sucedidos conseguem apagar os antigos costumes, ridicularizar as velhas convenções e quebrar a continuidade das instituições sociais – motivo pelo qual, nos últimos tempos, eles têm descoberto a necessidade de estabelecer novos costumes, convenções e continuidade; mas este processo é lento e doloroso; e a nova ordem social que eventualmente emerge pode ser muito inferior à antiga ordem que os radicais derrubaram um seu zelo pelo Paraíso Terrestre.
      Os conservadores são defensores do costume, da convenção e da continuidade porque preferem o diabo conhecido ao diabo que não conhecem. Eles crêem que ordem, justiça e liberdade são produtos artificiais de uma longa experiência social, o resultado de séculos de tentativas, reflexão e sacrifício. Por isto, o organismo social é uma espécie de corporação espiritual, comparável à Igreja; pode até ser chamado de comunidade de almas. A sociedade humana não é uma máquina, para ser tratada mecanicamente. A continuidade, a seiva vital de uma sociedade não pode ser interronpida. A necessidade de uma mudança prudente, recordada por Burke, está na mente de um conservador. Mas a mudança necessária, redargúem os conservadores, deve ser gradual e descriminativa, nunca se desvencilhando de uma só vez dos antigos cuidados.

Terceiro, os conservadores acreditam no que se poderia chamar de princípio do preestabelecimento.

      Os conservadores percebem que as pessoas atuais são anões nos ombros de gigantes, capazes de ver mais longe do que seus ancestrais apenas por causa da grande estatura dos que nos precederam no tempo. Por isto os conservadores com freqüência enfatizam a importância do preestabelecimento – ou seja, as coisas estabelecidas por costume imemorial, de cujo contrário não há memória de homem que se recorde. Há direitos cuja principal ratificação é a própria antiguidade – inclusive, com freqüência, direitos de propriedade. Da mesma forma a nossa moral é, em grande parte, preestabelecida. Os conservadores argumentam que seja improvável que nós modernos façamos alguma grande descoberta em termos de moral, de política ou de bom gosto. É perigoso avaliar cada tema eventual tendo como base o julgamento pessoal e a racionalidade pessoal. O indivíduo é tolo, mas a espécie é sábia, declarou Burke. Na política nós agimos bem se observarmos o precedente, o preestabelecido e até o preconceito, porque a grande e misteriosa incorporação da raça humana adquiriu uma sabedoria prescritiva muito maior do que a mesquinha racionalidade privada de uma pessoa.

Quarto, os conservadores são guiados pelo princípio da prudência.

      Burke concorda com Platão que entre os estadistas a prudência é a primeira das virtudes. Toda medida política deveria ser medida a partir das prováveis conseqüências de longo prazo, não apenas pela vantagem temporária e pela popularidade. Os progressistas e os radicais, dizem os conservadores, são imprudentes: porque eles se lançam aos seus objetivos sem dar muita importância ao risco de novos abusos, piores do que os males que esperam varrer. Com diz John Randolph of Roanoke, a Providência se move devagar, mas o demônio está sempre com pressa. Sendo a sociedade humana complexa, os remédios não podem ser simples, se desejam ser eficazes. O conservador afirma que só agirá depois de uma reflexão adequada, tendo pesado as conseqüências. Reformas repentinas e incisivas são tão perigosas quanto as cirurgias repentinas e incisivas.

Quinto, os conservadores prestam atenção no princípio da variedade.

      Eles gostam do crescente emaranhado de instituições sociais e dos modos de vida tradicionais, e isto os diferencia da uniformidade estreita e do igualitarismo entorpecente dos sistemas radicais. Em qualquer civilização, para que seja preservada uma diversidade sadia, devem sobreviver ordens e classes, diferenças em condições matérias e várias formas de desigualdade. As únicas formas verdadeiras de igualdade são a igualdade do Juízo Final e a igualdade diante do tribunal de justiça; todas as outras tentativas de nivelamento irão conduzir, na melhor das hipóteses, à estagnação social. Uma sociedade precisa de liderança honesta e capaz; e se as diferenças naturais e institucionais forem abolidas, algum tirano ou algum bando de oligarcas desprezíveis irá rapidamente criar novas formas de desigualdade.

Sexto, os conservadores são refreados pelo princípio da imperfectibilidade.

A natureza humana sofre irremediavelmente de certas falhas graves, bem conhecidas pelos conservadores. Sendo o homem imperfeito, nenhuma ordem social perfeita poderá jamais ser criada. Por causa da inquietação humana, a humanidade tornar-se-ia rebelde sob qualquer dominação utópica e se desmantelaria, mais uma vez, em violento desencontro – ou então morreria de tédio. Buscar a utopia é terminar num desastre, dizem os conservadores: nós não somos capazes de coisas perfeitas. Tudo o que podemos esperar razoavelmente é uma sociedade que seja sofrivelmente ordenada, justa e livre, na qual alguns males, desajustes e desprazeres continuarão a se esconder. Dando a devida atenção à prudente reforma, podemos preservar e aperfeiçoar esta ordem sofrível. Mas se os baluartes tradicionais de instituição e moralidade de uma nação forem negligenciados, se dá largas ao impulso anárquico que está no ser humano: “afoga-se o ritual da inocência”4. Os ideólogos que prometem a perfeição do homem e da sociedade transformaram boa parte do século XX em um inferno terrestre.
4 William Buttler Yeats, The Second Coming (N. do T.).

Sétimo, conservadores estão convencidos que liberdade e propriedade estão intimamente ligadas.

      Separe a propriedade do domínio privado e Leviatã se tornará o mestre de tudo. Sobre o fundamento da propriedade privada, construíram-se grandes civilizações. Quanto mais se espalhar o domínio da propriedade privada, tanto mais a nação será estável e produtiva. Os conservadores defendem que o nivelamento econômico não é progresso econômico. Aquisição e gasto não são as finalidades principais da existência humana; mas deve-se desejar uma sólida base econômica para a pessoa, a família e o estado. Sir Henry Maine, em sua Village Communities, defende vigorosamente a causa da propriedade privada, como diferente da propriedade pública: “Ninguém pode ao mesmo tempo atacar a propriedade privada e dizer que aprecia a civilização. A história destas duas realidades não pode ser desintrincada”. Pois a instituição da propriedade privada tem sido um instrumento poderoso, ensinando a responsabilidade a homens e mulheres, dando motivos para a integridade, apoiando a cultura geral e elevando a humanidade acima do nível do mero trabalho pesado, proporcionando tempo livre para pensar e liberdade para agir. Ser capaz de guardar o fruto do próprio trabalho; ser capaz de ver o próprio trabalho transformado em algo de duradouro; ser capaz de deixar em herança a sua propriedade para sua posteridade; ser capaz de se erguer da condição natural da oprimente pobreza para a segurança de uma realização estável; ter algo que é realmente propriedade pessoal – estas são vantagens difíceis de refutar. O conservador reconhece que a posse de propriedade estabelece certos deveres do possuidor; ele reconhece com alegria estas obrigações morais e legais.

Oitavo, os conservadores promovem comunidades voluntárias, assim como se opõem ao coletivismo involuntário.

      Embora os americanos tenham se apegado vigorosamente aos direitos privados e de privacidade, também têm sido um povo conhecido por seu bem sucedido espírito comunitário. Na verdadeira comunidade, as decisões que afetam de forma mais direta as vidas dos cidadãos são tomadas no âmbito local e de forma voluntária. Algumas destas função são desempenhadas por organismos políticos locais, outras por associações privadas: enquanto permanecem no âmbito local e são caracterizadas pelo comum acordo das pessoas envolvidas, elas constituem comunidades saudáveis. Mas quando as funções, quer por deficiência, quer por usurpação, passam para uma autoridade central, a comunidade se encontra em sério perigo. Se existe algo de benéfico ou prudente em uma democracia moderna, isto se dá através da volição cooperativa. Se, então, em nome de uma democracia abstrata, as funções da comunidade são transferidas para uma coordenação política distante, o governo verdadeiro, através do consentimento dos governados, cede lugar para um processo de padronização hostil à liberdade e à dignidade humanas.
      Uma nação não é mais forte do que as numerosas pequenas comunidades pelas quais é composta. Uma administração central, ou um grupo seleto de administradores e servidores públicos, por mais bem intencionado e bem treinado que seja, não pode produzir justiça, prosperidade e tranqüilidade para uma massa de homens e mulheres privada de suas responsabilidades de outrora. Esta experiência já foi feita; e foi desastrosa. É a realização de nossos deveres em comunidade que nos ensina a prudência, a eficiência e a caridade.

Nono, o conservador percebe a necessidade de uma prudente contenção do poder e das paixões humanas.

      Politicamente falando, poder é a capacidade de se fazer aquilo que se queira, a despeito da aspiração dos próprios companheiros. Um estado em que um indivíduo ou um pequeno grupo é capaz de dominar as aspirações de seus companheiros sem controles é um despotismo, quer seja monárquico, aristocrático ou democrático. Quando cada pessoa pretende ser um poder em si mesmo, então a sociedade se transforma numa anarquia. A anarquia nunca dura muito tempo, já que, sendo intolerável para todos e contrária ao fato irrefutável de que algumas pessoas são mais fortes e espertas do que seus próximos. À anarquia sucede a tirania ou a oligarquia, nas quais o poder é monopolizado por pouquíssimos.
      O conservado se esforça por limitar e balancear o poder político para que não surjam nem a anarquia, nem a tirania. No entanto, em todas as épocas, homens e mulheres foram tentados a derrubar os limites colocados sobre o poder, a favor de um capricho temporário. É uma característica do radical que ele pense o poder como uma força para o bem – desde que o poder caia em suas mãos. Em nome da liberdade, os revolucionários franceses e russos aboliram os limites tradicionais ao poder; mas o poder não pode ser abolido; e ele sempre acha um jeito de terminar nas mãos de alguém. O poder que os revolucionários pensavam ser opressor nas mãos do antigo regime, tornou-se muitas vezes mais tirânico nas mãos dos novos mestres do estado.
      Sabendo que a natureza humana é uma mistura do bem e do mal, o conservador não coloca sua confiança na mera benevolência. Restrições constitucionais, freios e contrapesos políticos (checks and balances), correta coerção das leis, a rede tradicional e intricada de contenções sobre a vontade e o apetite – tudo isto o conservador aprova como instrumento de liberdade e de ordem. Um governo justo mantém uma tensão saudável entre as reivindicações da autoridade e as reivindicações da liberdade.

Décimo, o pensador conservador compreende que a estabilidade e a mudança devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade robusta.

      O conservado não se opõe ao aprimoramento da sociedade, embora ele tenha suas dúvidas sobre a existência de qualquer força parecida com um místico Progresso, com P maiúsculo, em ação no mundo. Quando uma sociedade progride em alguns aspectos, geralmente ela está decaindo em outros. O conservador sabe que qualquer sociedade sadia é influenciada por duas forças, que Samuel Taylor Coleridge chamou de Conservação e Progressão (Permanence and Progression). A Conservação de uma sociedade é formada pelos interesses e convicções duradouros que nos dão estabilidade e continuidade; sem esta a Conservação as fontes do grande abismo se dissolvem, a sociedade resvala para a anarquia. A Progressão de uma sociedade é aquele espírito e conjunto de talentos que nos instiga a realizar uma prudente reforma e aperfeiçoamento; sem esta Progressão, um povo fica estagnado. Por isto o conservador inteligente se esforça por reconciliar as reivindicações da Conservação e as reivindicações da Progressão. Ele pensa que o progressista e o radical, cegos aos justos reclamos da Conservação, colocariam em perigo a herança que nos foi legada, num esforço de nos apressar na direção de um duvidoso Paraíso Terrestre. O conservador, em suma, é a favor de um razoável e moderado progresso; ele se opõe ao culto do Progresso, cujos devotos crêem que tudo o que é novo é necessariamente superior a tudo o que é velho.
      O conservador raciocina que a mudança é essencial para um corpo social da mesma forma que o é para o corpo humano. Um corpo que deixou de se renovar, começou a morrer. Mas se este corpo deve ser vigoroso, a mudança deve acontecer de uma forma harmoniosa, adequando-se à forma e à natureza do corpo; do contrário a mudança produz um crescimento monstruoso, um câncer que devora o seu hospedeiro.          O conservado cuida para que numa sociedade nada nunca seja completamente velho e que nada nunca seja completamente novo. Esta é a forma de conservar uma nação, da mesma forma que é o meio de conservar um organismo vivo. Quanta mudança seja necessária em uma sociedade, e que tipo de mudança, depende das circunstâncias de uma época e de uma nação.

      Assim, este são os dez princípios que tiveram grande destaque durante os dois séculos do pensamento conservador moderno. Outros princípios de igual importância poderiam ter sido discutidos aqui: a compreensão conservadora de justiça, por exemplo, ou a visão conservadora de educação. Mas estes temas, com o tempo que passa, eu deverei deixar para a sua investigação pessoal.
      Eric Voegelin costumava dizer que a grande linha de demarcação na política moderna não é a divisão entre progressistas de um lado e totalitários do outro. Não, de um lado da linha estão todos os homens e mulheres que imaginam que a ordem temporal é a única ordem e que as necessidades materiais são as únicas necessidades e que eles podem fazer o que quiserem do patrimônio da humanidade. No outro lado da linha estão todas as pessoas que reconhecem uma ordem moral duradoura no universo, uma natureza humana constante e deveres transcendentes para com a ordem espiritual e a ordem temporal.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

COLABOARAÇÃO ENTRE CATÓLICOS E NÃO-CRENTES


Conversa com Dom Giampaolo Crepaldi, arcebispo de Trieste

TRIESTE, quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011 (ZENIT.-org) - No mundo de hoje, existe um grande debate entre leigos e crentes, Estado e Igreja, religião e secularização. E não se trata apenas de intervenções
eclesiásticas no que diz respeito às políticas que regem o Estado ou a sociedade civil.
O tema da relação entre laicidade e religião se tornou mais complexo, especialmente quando se fala sobre a ameaça do fundamentalismo islâmico, que não reconhece qualquer diferença entre ambas.
Para aprofundar no tema, ZENIT entrevistou Dom Giampaolo Crepaldi, arcebispo de Trieste, presidente da Comissão "Caritas in veritate", do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE) e presidente do Observatório Internacional "Cardeal Van Thuan", sobre doutrina social da Igreja.

ZENIT: Excelência, em primeiro lugar, o que quer dizer para o senhor o termo "leigo"?

Dom Crepaldi: Eu acho que hoje esta palavra tem quatro significados. O primeiro é "não sacerdote" e "não religioso". Quem não é sacerdote nem pertence a uma congregação de monges, frades ou religiosos é "leigo". Minha mãe e meu pai eram leigos.

Em segundo lugar, poderíamos chamar de "leigo" quem acredita que a esfera política é autônoma da religião, mas que, ao mesmo tempo, pode usar os recursos morais e espirituais da religião, até mesmo sentir necessidade deles, pois do contrário a própria política se transformaria em um absoluto religioso.
Um terceiro significado de "leigo" se refere a quem vive e independente da religião; em outras palavras, alguém indiferente à religião.
     E, finalmente, hoje, "leigo" também pode significar antirreligioso, ou seja, alguém que combate a religião, não a deixa expressar-se, não lhe dá lugar no espaço público.

ZENIT: Seria possível estabelecer uma hierarquia entre estes significados? Em sua opinião, qual é a verdadeira laicidade?
Dom Crepaldi: A primeira definição não é um problema para ninguém. Entre as outras três, eu diria que a mais correta é a primeira (equivalente à segunda no elenco mencionado), enquanto a segunda e a terceira são incorretas, em primeiro lugar, do ponto de vista da laicidade. Então, seriam formas de laicidade pouco leigas.
ZENIT: Eu entendo que o senhor diga que quem combate a religião é pouco leigo, mas quem não a leva em consideração e é indiferente não seria um autêntico leigo?

Dom Crepaldi: Já existe uma exclusão de Deus na esfera pública. Mesmo que eu não a combata abertamente, se eu disser que a organização da sociedade não deve levar em consideração, nem minimamente, a dimensão religiosa, mas deve ser indiferente e, por exemplo, que é necessário excluir os símbolos religiosos, investir em uma educação que prescinda totalmente da religião, que o bispo não pode se manifestar publicamente e que os católicos não podem exercer sua presença explícita na sociedade, ou coisas desse tipo... então, eu estou dizendo que sou indiferente, mas, na verdade, eu fiz uma escolha baseada na exclusão.

ZENIT: Portanto, não é possível não adotar uma postura concreta com relação ao problema de Deus?

Dom Crepaldi: Não é possível. E a laicidade que diz tornar isso possível é uma farsa. A laicidade é o exercício da razão e não do engano. Você pode construir um mundo baseado em Deus ou não baseado em Deus. Não existe uma terceira possibilidade. Basear um mundo em Deus não significa ser um integralista; significa reconhecer a autonomia dos assuntos humanos, mas concebê-los dentro de seus limites e, portanto, em sua necessidade estrutural de um suplemento de recursos para serem eles mesmos. Por esta razão, um mundo sem Deus não significa um mundo neutro.

ZENIT: Além disso, hoje em dia se diz que a questão de Deus vem depois, para quem quer considerá-la. O senhor, porém, diz que está em primeiro lugar, por ser uma questão da qual ninguém pode escapar.

Dom Crepaldi: A questão de Deus é anterior a todas as outras e não há ninguém que não a considere. Isso acontece porque, quando conhecemos a realidade, imediatamente a reconhecemos como necessitada de um fundamento, ou seja, como incapaz de explicar-se por completo sozinha.

Nessa visão, já existe a ideia, embora muito geral, de Deus, que está conosco sempre. A ideia de Deus não se une, portanto, depois de elaborarmos todas as outras.

O leigo é aquele que usa a razão para organizar sua vida, mas não para absolutizar a razão e fazer dela sua prisão; o leigo é aquele que mantém a razão aberta à pergunta, permanece disponível a um suplemento de sentido que a razão sozinha não lhe pode dar, mas ao qual nos remite, já que ela percebe uma necessidade de ser completada.
ZENIT: Nesse sentido, então, apenas é leigo quem permanece aberto a Deus.

Dom Crepaldi: Eu acho que é exatamente assim, e eu vou lhe dar dois exemplos: o presidente francês, Nicolas Sarkozy, em seu famoso discurso em São João de Latrão, há alguns anos, usou a expressão "laicidade positiva". Com este termo, ele queria expressar uma atitude positiva de abertura com relação à religião. O Papa Bento XVI mostrou que ele valorizava esta expressão e a empregou em sua viagem à França, há dois anos.

O segundo exemplo é o seguinte: Joseph Ratzinger, em um famoso discurso que deu quando ainda era cardeal, convidou os leigos a "viver como se Deus existisse". Eis aqui, novamente, a questão da laicidade positiva. Seria verdadeiramente pouco leigo eliminar a dúvida: "E se Deus existir?". O crente, cuja fé não está isenta de certa incredulidade, pede ao leigo a mesma honestidade intelectual; que também viva com ele a dúvida leiga: "temos a certeza de que Deus não existe?".

ZENIT: E se o leigo não o fizer?

Dom Crepaldi: Eu acho, então, que ele não seria realmente um leigo. Ele se converteria em um dogmático e se deixaria levar por um desgosto intolerante com relação à religião, que o tornaria incapaz de ver objetivamente o seu significado; ele a trocaria por uma superstição charlatona. De fato, ele a combateria, naturalmente em nome da laicidade, que se tornaria a nova religião da antirreligião. Hoje, existem muitos deles: são leigos intolerantes.