sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

CARTA DE PAULO VI AO PROFESSOR ÉTIENNE GILSON


Ao venerado Professor Étienne Gilson, nosso Filho em Jesus Cristo



      O passar do tempo não eclipsou, malgrado vossa modéstia, os méritos que vós adquiristes por meio da vossa longuíssima e vastíssima atividade intelectual, assim como por meio da vossa fidelidade exemplar à Igreja. Enquanto damos graças ao Senhor por estes anos muito bem preenchidos e que contribuíram de forma muito eficaz à irradiação do pensamento cristão, temos hoje em dia que vos exprimir pessoalmente uma estima que acalentamos há muito tempo por vós e um reconhecimento que vos deve a Igreja.
      Vosso ensinamento nas Universidades francesas, notavelmente na Sorbonne e no Collège de France, ou ainda em Harvard, ou em Toronto, onde fundastes o “Institute of Medieval Sciences”, sem esquecer as lições que destes na nossa Universidade de Latrão; os “Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen-Age”, fundados e durante muito tempo dirigidos sob vossos cuidados; enfim, e sobretudo, as densas obras que tendes publicado, vos classificam no primeiro lugar entre aqueles que iniciaram nossos contemporâneos nas riquezas, muitas vezes esquecidas ou desdenhadas, da filosofia medieval. A Igreja, especialista na humanidade, só pode se rejubilar.
      Entre os diversos representantes desta filosofia, as vossas preferências se orientam em primeiro lugar para Santo Tomás. Soubestes pôr em evidência a originalidade do tomismo ao mostrar como o Doutor Angélico – iluminado pela revelação cristã, em particular pelo dogma da criação e pelo que vós denominastes a “metafísica do Êxodo” – chegou à noção geral e verdadeiramente inovadora do “ato de ser”, ipsum esse. Desde logo, a sua filosofia se situava em um plano completamente diferente da de Aristóteles. Desta forma, revivestes uma fonte de sabedoria da qual nossa sociedade técnica tirará um grande proveito, fascinada como é pelo “ter”, mas muitas vezes cega com relação ao sentido do “ser”, e às suas raízes metafísicas.
      O vosso interesse não se limitou, por outro lado, a Santo Tomás. Santo Agostinho, são Bernardo, são Boaventura, Duns Scott foram igualmente objetos dos vossos estudos. Destes trabalhos, como daqueles, mais gerais, sobre a “filosofia da Idade Média” e sobre o “espírito da filosofia medieval”, uma grande idéia se depreende que nos é particulamente cara: a fé não é, para o pensamento, para a cultura humana, um entrave ou um abafamento, mas uma luz e um estimulante. É dentro do contexto da teologia, à luz da Revelação, que o pensamento filosófico, de uma forma notável em Santo Tomás, atingiu os seus picos. Como gostaríamos que as novas gerações, fatigadas das ideologias atéias, redescobrissem esta escola de fecundidade da fé ao mesmo tempo que a confiança na razão, que é um dom do Criador!
      Vossa obra, de resto tão rica e variada, e que vos valeu depois de muito tempo a honra de ter uma cadeira na Academia Francesa, de se tornar membro da Academia romana de Santo Tomás de Aquino e da Religião Católica, e de receber tantas distinções universitárias, mostra bem como a fé reconhece e favorece o mais autêntico humanismo. Vossa visão de filósofo e de historiador se voltou aos assuntos mais diversos, desde que eles tocassem a qualidade do homem e da civilização: as letras – como não evocar, aqui, vossos estudos sobre Dante? -, a arte, a linguagem, a biologia, a cultura de massa foram objetos de vossa reflexão e de vossas publicações. Como vosso amigo Maritain, soubestes fazer os cristãos de hoje, e muitos homens de boa vontade, tantas vezes angustiados e perdidos, ouvirem palavras de bom senso, de sabedoria, de fidelidade.
      Acima de tudo, caro professor – é um dos pontos que mais nos preocupa na conjuntura atual – vós realizastes vossa atividade e manifestastes vossa fé cristã no seio da Igreja Católica que sempre considerastes como mãe. Recebestes dela, com confiança, tudo o que ela podia vos dispensar dos mistérios de Deus. Trabalhastes lealmente por ela, lhe prestando um dos serviços mais eminentes que requer a sua pastoral do pensamento. Trouxestes um testemunho em seu favor. Sofrestes, e sofrestes com ela, com o que a desfigurava. Não cessastes de lhe trazer confiança e afeição.
      Que o Senhor faça germinar o que tendes semeado com tanta paciência! Que ele faça frutificar vosso testemunho! Que ele suscite outras testemunhas vigorosas do pensamento cristão! E que ele vos cumule, a vós mesmo, de Sua paz! De nossa parte, de todo o coração, em penhor a todos estes dons e em testemunho de nossa fiel veneração, nós vos concedemos nossa afetuosa Bênção Apostólica.

Dado no Vaticano, 8 de agosto de 1975.

PAULUS PP. VI

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